sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Pão e Poesia

Hoje eu acordei com aquela vontade de revirar o baú das relíquias
Aquele que, no fundo, todo mundo tem escondido no porão do peito
Engraçado é que a gente encontra cada coisa... que nem se lembrava mais que guardou
Mas está lá, prova viva às vezes de um crime, de um ato insano ou desatino de menino
Eu, por exemplo, inventei de guardar o rádio antigo de meu pai, que eu quebrei de vez aos dez anos de idade, quando resolvi abrir, por incontida curiosidade, e não sabia mais onde colocar cada peça: “sinto muito, perda total”, disse o técnico
Por causa disso, teve ordem de castigo com aquela voz carrancuda de pai aborrecido
Pois, vasculhando o baú, dei de cara agora com o rádio, mudo na sua inutilidade de coisa quebrada, mas soube contar sua história com ar queixoso de vítima
Ahh eu achei também um vidro de perfume francês que, aos 12 anos de idade, roubei do guarda-roupa da avó materna
Revelado, finalmente, o mistério do sumiço do perfume da vó Zezé
A gente guarda tanta coisa no baú das relíquias, encontrei até o som da risada escancarada da minha mãe, próprio de quem se entregava à vida sem medida
Topei com minha professora de ciências da quinta-série, uma morena angolona que falava português com sotaque de Portugal, e despertou em mim o atrevimento de querer aprender como ninguém, uma espécie de curiosidade constante pela vida
A gente realmente guarda cada coisa no nosso baú que até se esquece que guardou
Sem contar que às vezes até cai por descuido lá dentro...
São fotografias, bilhetes, cartas, vozes, histórias vividas e sonhos adormecidos
No fundo, são elas, as nossas memórias, que nos tornam possíveis.

Ana Luiza Fireman

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